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(In)Sensibilidade e Poder Judiciário

A responsabilidade daqueles que atuam na área criminal é incomensurável. A liberdade humana, o destino de uma vida e, não raras vezes, de um núcleo familiar inteiro estão em jogo.

O processo penal, dessa forma, não pode ser concebido como um mero amontoado de papéis. Como se fosse “só mais um processo.” Cada processo é único, singular, diferente e carrega uma história de vida, uma tragédia, um drama diverso consigo.

O Poder Judiciário, soterrado de papéis, tem pecado – e muito – neste quesito: as vezes tenho a impressão de que os Julgadores – propositalmente ou não – olvidam das trágicas consequências do processo penal, do quão dolorida é uma restrição precoce do direito de liberdade (e como isso pode destruir uma família) e de que como a demora processual pode arruinar vidas – através da célebre, angustiante e insuportável pena processual, que atormenta a vida do réu e lhe retira diversas possibilidades de crescimento até que exista uma decisão definitiva.

Não raro, se diz por aí, que os Julgadores não se podem deixar afetar pelos processos, pelos dramas alheios, afinal, do contrário, a vida de um juiz seria uma vida impossível. Errado. Os maiores Magistrados de nosso país são juízes que sentem, são humanos e têm noção da responsabilidade e das consequências inerentes a profissão.

É sentindo que se analisa processos, até porque, quando é proferido um julgamento, não é possível fazê-lo de outro modo, senão através do sentimento, que passa por um processo de interpretação e de valoração das provas que é próprio de cada Julgador.

Veja-se que – todos sabem! – vivemos em um período de banalização das prisões cautelares. A liberdade, cada vez mais, tem se tornado a exceção e a prisão cautelar, imediata, a regra, a realidade.

Inicia-se a investigação criminal ou o processo penal com o suspeito ou o acusado já preso. Na grande maioria das vezes, simplesmente porque existem indícios de autoria e materialidade, vale dizer, não é perquirida a presença do periculum libertatis e a presença de substrato fático que indicasse a prisão ser a única medida cabível para tutelar o processo (princípio da provisionalidade).

Prende-se porque alguém diz que pode ser ele o autor do delito e não se preocupam com o que ele diz. A negativa dos suspeitos ou réus, normalmente, não é considerada ou sequer investigada.

A situação se agrava ainda mais no procedimento do Júri: invoca-se um “princípio” inexistente, o tal do “in dubio pro societate”, não previsto em lei, porque ninguém sabe apontar em qual dispositivo da Constituição Federal ou até mesmo do Código de Processo Penal ele estaria contemplado, e manda-se o increpado, o delinquente, o indesejado a júri, não importando o que ele diga, e lá, no júri, tudo pode acontecer.

O problema é que um processo penal brasileiro tramita por cerca de 4, 5, 6, 7, 8 anos – quando não por muito mais tempo! E essa demora para ir a julgamento destrói vidas e retira oportunidades, não raras vezes, por caprichos e comodidades de julgadores, que postergam em meses ou em anos a realização de uma audiência, de uma sessão de júri, enfim, de um importante momento processual, sem motivos concretos razoáveis para tanto.

E os réus? Querem ir a julgamento, querem retomar suas vidas, mas não podem. A Constituição Federal prevê a duração razoável do processo como um direito fundamental da maior relevância.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, igualmente, assegura como um direito humano da maior relevância o direito de todos serem submetidos a julgamento num prazo razoável. Porém, a CF e a CADH de nada valem, afinal, na prática, são tidas como letras mortas.

Como é cômodo e seguro, Senhoras e Senhores, ser insensível, estar fechado aos dramas alheios e não dar ao outro o benefício da dúvida (ao contrário: na realidade brasileira, a prática demonstra que, em direta afronta à Constituição Federal, parte-se da premissa de que o sujeito é culpado e não inocente!).

Como é seguro não perceber que alguns caprichos ou vaidades, ou até mesmo teimosias, destroem vidas. Como é confortável não estar no lugar do outro e não se preocupar com isso, não percebendo que um processo de quatro, cinco anos ou mais, engessa vidas e retira oportunidades e perspectivas, principalmente de emprego e de evolução na vida.

A questão é: e depois? E se o réu for absolvido? Quem lhe devolverá as oportunidades perdidas em razão de uma acusação que não deveria ter existido? E aquele trabalho que não volta mais? E aquelas melhorias de vida que lhes foram cerceadas? E a destruição do núcleo familiar por uma prisão que não se fazia necessária durante o processo?

Como é confortável não sentir. Como é seguro fazer-se o oposto: não dar nem o benefício da dúvida ao sujeito.

Ora, prisões são aplaudidas, comemoradas, ovacionadas. As pessoas gostam de ver os suspeitos eleitos pelo sistema midiático sofrerem. É muito mais confortável aos Julgadores prenderem o sujeito, afinal, serão aplaudidos por isso.

E a platéia, que lhes aplaude, bate palmas sem saber o porquê: a plateia não conhece as provas colhidas na fase de investigação ou o processo, não tiveram acesso a um depoimento dos autos sequer, mas, mesmo assim, aplaudem a prisão do sujeito e, sem nada saber, bradam por aí que ele é culpado.

Agora, vejamos o oposto. E se o Julgador, ao invés de prender, determina a soltura do sujeito para que ele se defenda – e assim responda ao processo (o que não se confunde com impunidade) – em liberdade? O que aconteceria?

Bem, a mesma plateia que aplaude sem nada saber, vaiaria de igual maneira: sem sequer saber o porquê estava vaiando (porque ela não conhece o processo e as provas). Mas a vaia é contundente e o Poder Judiciário, cada vez mais, vem se acovardando a ela. E, cada vez mais, vem cedendo a pressões midiáticas.

O processo penal está cada vez mais complicado: não basta mais somente o exercício do contraditório no processo. O contraditório na mídia tem se tornado mais importante e eficaz, afinal, em diversos casos, é a mídia que vem determinando o desfecho de processos.

Falta, portanto, sensibilidade e empatia. Falta colocar-se no lugar do outro e, num exercício imaginético, sentir na pele as consequências do processo penal. Sentir na própria pele, como seria responder a todo o processo preso, longe da família; sentir na pele as perdas de oportunidades e os motivos pelos quais se perdeu cada oportunidade; sentir na própria pele como é angustiante e torturadora a pena processual, decorrente da demora para conduzir o caso a julgamento e como é estigmatizante sentar-se sobre o famigerado banco dos réus.

Sentir na pele como é dolorido ser penalizado por antecipação, respondendo a todo o processo preso, quando sequer fora julgado e, muitas vezes, ouvido ainda.

Não se pode olhar para um processo criminal e enxergar só documentos. De todo processo depende uma liberdade e, normalmente, diversas vidas conexas a do acusado.

O direito, como dizia o saudoso Bráulio Marques, tem vida, tem cor e tem alma. Não é apenas um amontoado de papéis.

É isso o que falta, colocar-se no lugar do outro:

“Encontro de dois.

Olho no olho.

Cara a cara.

E quando estiveres perto

eu arrancarei

os seus olhos

e os colocarei no lugar dos meus

e tu arrancará

os meus olhos

e os colocará no lugar dos teus.

Então, eu te olharei com teus olhos

e tu me olharás com os meus”

(Jacob Levy Moreno).

É disso que o mundo do direito carece. De sensibilidade.

 

Escrito por: Guilherme Kuhn

Fonte: canalcienciascriminais.com.br