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Nem pra Menor, nem pra Maior. Prisão é a forma mais cara de tornar pessoas piores.

Escrito por Luiz Carlos Leitão

Por Samuel Silva

Nesta semana será votado novamente uma proposta de redução da maioridade penal para 16 anos, levando novamente esse debate à sociedade civil. Organizações e movimentos pró Direitos Humanos se apressam em soltar notas de repúdio, enquanto órgãos estatais, como a Polícia Militar, e políticos e jornalistas conservadores advogam a medida dura como o fim da mordomia da “bandidagem” e maior segurança ao “cidadão de bem”. Neste conflito, a realidade é que a maioria da população é favorável à redução da maioridade, o que torna este debate mais importante. Falemos então sobre punição, jovens e violência.

O discurso pró redução da maioridade tem alguns argumentos centrais:

  1. A medida responsabilizaria os infratores de 16 como adultos, visto que com essa idade já podem votar, então também podem arcar com as consequências dos seus atos.
  2. O adolescente infrator, uma ameaça a toda sociedade, agora sem a certeza da “impunidade”, será preso e incapacitado de cometer novos crimes como adultos.
  3. Além disso, a ameaça de punição iria prevenir novos atos criminosos por outros adolescentes que perceberão que a época da farra criminosa acabou.
  4. A Fundação Casa não funciona e os menores saem de lá piores que entraram, então é melhor já prender esses criminosos mais cedo como adultos e por mais tempo, em vista de proteger a sociedade.

Não é muito difícil entender que esses argumentos são desastrosos quando se estuda mais os efeitos reais, e não o discurso legitimante, do sistema penal. Porém, o que costuma passar despercebido inclusive por pessoas progressistas é que os mesmos argumentos que sustentam a loucura da redução da maioridade penal, também sustentam a própria existência das prisões. Respectivamente: imputabilidade penal e justiça; incapacitação individual; prevenção geral; e ressocialização. O que conservadores fazem não é muito além de estender as premissas punitivas que já estão em vigor para a maioria da sociedade também para adolescentes. Rejeitar tais premissas para adolescentes sem rejeitar essas premisas para adultos é o que de fato eu não compreendo. Enquanto essa semana as mobilizações contra a redução da maioridade penal irão tomar o Congresso e as Redes Sociais, poucos irão estender a crítica ao poder punitivo como um todo, questionando o próprio binômio de “crime e castigo”.

Já adianto que não é meu intuito afirmar que como o poder penal é nefasto para adolescentes e adultos, deveríamos punir todos igualmente mesmo. Pelo contrário, o objetivo é estender a compreensão que se tem com adolescentes criminalizados para qualquer pessoa criminalizada, reafirmando que políticas preventivas (com uma efetiva de redistribuição de poder na sociedade, econômico, racial, de gênero etc; de inclusão social e condições dignas, públicas e gratuitas de vivência, com adequada moradia, acesso à cidade, à saúde, à educação etc) são as únicas alternativas reais de obtermos uma sociedade menos violenta e, quando houver situações-problemas denominadas pelo Estado como crime, que haja reações reparativas, conciliatórias e restaurativas. Retribuir sofrimento, afinal, essa justificativa filosófica para o poder puntivo há milênios, não possui muita utilidade para além de atender um desejo de vingança pessoal ou coletivo. Nada de emancipador vem daí.

Voltemos à questão da maioridade penal. Elas são em grande parte baseadas em um pânico moral alimentado pelo enquadramento midiático do crime, como programas estilo Cidade Alerta e Balanço Geral, que mostram frequentemente crimes violentos ainda que, proporcionalmente, estes não sejam tão frequentes quanto parecem. O caso da criminalidade juvenil é um exemplo disso. Apesar de se alarmar que jovens estão cometendo cada vez mais crimes e cada vez mais graves, a realidade é que crimes juvenis contra a vida são proporcionalmente irrisórios, cerca de 0,5%. Do outro lado, são os jovens as principais vítimas de homicídios, sendo que cerca de 30.000 dos 50.000 assassinatos anuais são de jovens até 30 anos. Destes, 77% são negros. Tal padrão se mantém quando se trata de violência estatal. A maioria das vítimas de violência policial, e do seletivo sistema penal são jovens, homens, negros, de baixa renda e escolaridade. Note essa “coincidência”, o tipo de perfil dado como provável criminoso e agressor violento pertence, ao contrário, ao grupo que mais é vítima desse tipo ataque. Infelizmente, o enquadramento midiático e político dado para a violência consegue convencer a maioria da população que 2×2=5.

Justiça Retributiva ou Vingança:

Ainda que se ignorássemos estes fatos, ainda podemos rebater os demais argumentos. Primeiramente, poder participar em eleições periódicas por meio de um voto de peso irrisório não possui relação alguma com merecer ser torturado institucionalmente pelo Estado nas prisões brasileiras. Sim, aquela que o próprio Ministro da Justiça julgou ser preferível a morte a ficar nas prisões. Quanto a ilegalidade e ao caráter de tortura seletivo das prisões brasileiras, ficam estas indicações 123456.

Mas o problema em questão não se resume à ignorância em geral das pessoas sobre as situações desumanas das prisões, mas sim à indiferença voluntária pelo que presidiários passam, quando não explicíta vontade de fazer sofrer aqueles que presumidamente causaram problemas à outras pessoas. Em uma visão de justiça retributiva, “quem comete crime tem que pagar por isso”.

Pouco percebem aqueles que focam a reação à situações-problemas no paradigma punitivo que isso nada faz de bom para vítimas. Não há amparo estatal às vítimas, assistência psicológica, médica, oportunidades de cura. Nem mesmo reparação e conciliação são ofertadas como alternativas na maioria das vezes. O Estado se vale de forma oportunista do sofrimento das vítimas para justificar seu aparato violento e legitimar o exercício de sua força.

Quando se foca em vingança ao infrator, se costuma esquecer de focar nas vítimas e nas demandas delas. Demandas que, em uma sociedade punitivista, podem a fazer pensar que a melhor reparação que ela pode ter é a retribuição do sofrimento, ao invés de cura pessoal, coletiva, e o tratamento do agressor que foque em levá-lo a não voltar a cometer agressões, não simplesmente em fazê-lo sofrer.

Incapacitação:

O argumento da incapacitação é talvez o mais óbvio, a pessoa presa é isolada do convívio social e se torna incapacitada de vitimizar outras pessoas novamente. Há dois problemas claros em relação a isso. Primeiramente, o isolamento nunca é total, presos não vivem em uma realidade paralela por mais que tentemos escondê-los e ignorá-los. De dentro das cadeias é possível cometer vários crimes, sejam uns com os outros, sejam com agentes do Estado ou também coordenando ações fora da cadeia. A violência entre presidiários é comum, e a proteção individual é o principal fator que leva presos a formarem facções, para se defenderem do Estado e de demais presos. Por mais que fechemos nossos olhos, a violência é a lei que impera nos presídios. Além disso, nada impede o exercício de atividades criminais que prejudiquem pessoas fora das prisões. E nesses casos, o que você faz, prende o presidiário?

No fim das contas, está é a consequência lógica desse argumento. Se a única forma de conter o crime é incapacitando o criminoso, é preciso encarcerar todos os criminosos pelo máximo de tempo possível. O “problema” é que no Brasil não existe prisão perpétua, e praticamente todo presidiário que sobreviver à prisão será solto novamente, agora com toda uma bagagem de vida violenta e criminosa. A única forma de impedir isso seria prendê-los mais e por mais tempo. Mas isso é a alguma alternativa a ser levado a sério por uma democracia? Será que prender pro resto da vida o máximo de pessoas que cometeram atos de violência será a solução para a violência? Ou, mais uma vez, a solução neste caso não passa um populismo demagógico que flerta com o senso comum sem oferecer nenhuma alternativa que atue nas causas, e não nos efeitos dos problemas sociais?

Não podemos praticar, sequer pensar, nada além de um apartheid social que divide simplisticamente o mundo entre ”civilizados” e ”bárbaros”, entre ”cidadãos de bem” e ”bandidos”?

Prevenção Geral Deterrence:

O terceiro argumento aborda o principal argumento liberal pela existência das prisões: a prevenção geral. Aquele místico efeito pedagógico que recairia sobre a sociedade, formando um novo conjunto de hábitos coletivos e educação moral através das etapas de criminalização: a lei penal (primária), a prática do sistema de justiça criminal, como polícia e judiciário (secundária), e a execução penal (terciária). Mesmo se tal paradigma fosse efetivo, nada impediria a estrutura seletiva dos processos criminalizatórios. Em outras palavras, não se estaria fazendo muito mais do que sacrificar pobres, pretos e dissidentes sociais para manter outros num caminho de “retidão legal”.

Apesar de em vigor há séculos, não há nenhuma evidência desse efeito preventivo de leis penais. Leis mais duras, leis mais leves, ausência de leis. Tais estados legais parecem não ter efeito nenhum na atuação das pessoas. Crime ou não, pessoas determinadas a cometer um aborto, um homicídio, um furto ou uma tragada de maconha irão fazê-lo. O medo do poder penal existe, mas é ineficaz como prevenção. O que ocorre é que as pessoas se esforçarão mais para não serem descobertas, ao invés de miraculosamente deixar a “vida do crime”, essa mesma que todos nós temos (Ou existe alguém que nunca cometeu crimes?).

Contudo, esse argumento permanece como o paradigma mais persistente para lidar como conflitos, e é a explicação de todos os fenômenos. Se existe um determinado conflito denominado crime, como furtos, aumentar as penas e a “dureza” sobre ele é apontado como solução. Anos após, caso a taxa de furtos caia, será percebido um bom exemplo da eficácia das penas, pois conteve o crime. Se, na verdade, a taxa de furtos subir, também será apontado a eficácia das penas, sendo argumentado que a taxa não subiu mais apenas porque a lei estava mais pesada e que, para resolver o problema, basta aumentar proporcionalmente a dureza penal para combater esse aumento de criminalidade. De uma forma ou outra, a pena continua sendo vista como remédio à problemas sociais. Ninguém questiona o próprio paradigma, e o ônus da prova acaba sendo jogada na minoria intelectual que questiona a prevenção geral ao invés de naqueles que a colocam como panacéia social. A tautologia irracional se mostra novamente hegemônica.

Ressocialização:

Por fim, quase que ironicamente, o argumento que a ressocialização é um mito e que não compensa investir em medidas socioeducativas possui acerto e erro. De fato, a ressocialização não existe, e esse discurso bonito costuma ser usado pelo judiciário como pretexto para encarcerar mais, como se isolar pessoas de suas famílias, amigos, estudos e trabalhos fossem, de alguma forma miraculosa, torná-las melhores. Como se deixá-las em um ambiente hostil, com estupros diários e abusos estatais constantes, com conflitos entre gangues e facções, superlotação, comida estragada e enfim, sem nenhuma dignidade humana fosse resolver o problema dessa pessoa e da sociedade. Contudo, o grande desafio ainda colocado à esquerda é perceber que mesmo sem superlotação, mesmo com cabines individuais e um periódico esporte, estudo e trabalho, a prisão ainda possui um mesmo fundamento punitivo e, portanto, estéril: sofrimento e isolamento.

Instituição falida como método de proteção ou bem sucedida como meio de controle social?

Dor e solidão travestidas de penitência e reflexão, essa foi a alternativa moderna para se contrapor ao poder penal medieval, pautada em dor e espetáculo. O fracasso da prisão em seus próprios termos legitimantes, denunciado e explorado desde seu surgimento, faz questionar os motivos pelos quais essa instituição se sustenta por tanto tempo.

“Mas talvez devessemos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da deliquência, indução em reincindência, transformador do infrator ocasional em delinquência. (…) Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprir as infrações, mas antes a distingui-las, a distruibuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não “reprimiria” pura e simplesmenteas ilegalidades, faria sua “economia” geral. (…) Toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte deste mecanismo de dominação.” (FOUCAULT, 2000, p.226)

A seletividade do sistema penal é, talvez, a essência da crítica ao poder puntivo ao qual se debruça a criminologia radical, abolicionistas penais e afins. A partir das constatação da chamada Cifra Negra, ou a quantidade de crimes na sociedade que não são descobertos, reportados, arquivados, processados e punidos pelo poder penal, se percebe que os comportamentos denominados como crimes não são fruto de anomias sociais, mas sim parte estruturante da vida social em todas as classes.

“A disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade operatividade dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população. Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizadas, praticamente não haveria habitantes que não fossem, por diversas vezes, criminalizados”. (ZAFFARONI, 2010, p. 26)

O fato das pessoas criminalizadas serem sobretudo pobres, negras entre outras minorias não reflete uma realidade em que negros e pobres são mais criminosos, mas sim que o processo de criminalização recai seletivamente e desproporcionalmente nas classes mais vulneráveis da sociedade. A virada criminológica se dá por perceber que, para entender o crime, é preciso investigar o processo de criminalização, e não aqueles dados como criminosos. Como diz Raúl Zafaronni, quando o poder punitivo pára de perseguir bruxas, as bruxas deixam de existir, é a lei que ‘inventa’ o criminoso.

Essa seletividade também se dá através da escolha de quais crimes reprimir. Apesar do valor supremo social ser a vida, tornando então os crimes contra a vida os mais graves e os que demandam maior atenção, se percebe que as pessoas criminalizadas e punidas por tais crimes são a exceção, totalizando cerca de apenas 15% das pessoas criminalizadas. A taxa de resolução pela polícia de homicídios não passa de 10%. Enquanto isso, 60% das pessoas sendo torturadas nas prisões lá se encontram por crimes não-violentos, como tráfico de drogas e furtos. É a esses crimes que a polícia e o judiciário se concentram, apesar da retórica de defesa social que afirma que o sistema penal protege a sociedade de pessoas de alta periculosidade.

Mas façam as contas, há mais de 50.000 homicídios por ano no Brasil, e o total de pessoas presas por homicídio hoje são aproximadamente 50.000. Apesar da coincidência numérica, se todo homícidio fosse cometido por uma pessoa contra apenas outra pessoa, e fosse punido com prisão, em dez anos de tal lei, teríamos meio milhão de presos por homicídio. Mas essa não é a realidade e a verdade é que as pessoas mais violentas não são sequer o alvo preferencial do sistema penal. 50% dos homens presos são por crimes contra a propriedade (furto e roubo) e 24% são por crimes de drogas, em que não há vítimas mas sim consenso entre consumidores e vendedores de uma substância. Apenas 13% estão presos por homicídio. No caso de mulheres, 50% estão lá por pequeno tráfico e apenas 3% por homícido. Que a prisão existe para defender a vida, e não para controlar seletivamente a população, é um dos maiores mitos sociais em vigor. É por isso que o penalista argentino Raúl Zaffaroni considera o sistema penal um grande engôdo (2010, p. 26): ele sustenta dispor de um poder que não possui, que é a de garantir justiça, incapacitação, prevenção geral e ressocialização, ocultando o poder que de fato exerce, que é o controle arbitrário dos setores mais vulneráveis da sociedade.

O alvo preferencial desse sistema é qualquer um que enquadre no estereótipo do inimigo, o sujeito negro, pobre, favelado, jovem, justamente os que mais sofrem com violência no país. Este é enquadrado como a ameaça social, por políticos, policiais e jornalistas. E é a essa camada que, mesmo com um déficit de 200.000 vagas, está sempre reservado mais um lugar nas prisões. É aos sujeitos aos quais o Estado nunca se prestou a oferecer serviços públicos de qualidade, educação, moradia, saneamento, cultura, saúde etc; que o Estado sempre se aproximou com seu aparato repressor. Essa classe sempre conviveu com um Estado Policial, que executa oficialmente 1 pessoa a cada 6 horas, que aumentou sua taxa de encarceramento por cerca de 315% nos últimos 20 anos. É a eles, novamente, que a redução da maioridade penal irá atingir.

”Hoje, temos consciência de que a realidade operacional dos nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício que cancelam o discurso jurídico penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias, não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais.” (ZAFFARONI, 2010, p. 15)

A prisão é um fiasco como método de lidar com situações-problemas e de proteger a sociedade. Mas é uma bem sucedida maneira de reprimir seletivamente a população, enquanto garante privilégios para outros segmentos. O discurso de reforma da mesma não é suficiente, e é presente desde seu surgimento, e só levou a maior sofisticação e expansão desse método cruel de lidar com seres humanos. Punir não é solução para adolescentes, nem para adultos. Reduzir a maioridade penal é tirar adolescentes de um modelo problemático de lidar com situações-problema e colocá-los em um meio extremamente violento e mais prejudicial. É hora de repensar as premissas da punição e, enfim, gritar Abolição.

Fonte: http://petpol.org/- 25/03/2015